terça-feira, 9 de abril de 2019

A Cultura na corda-bamba dos cortes de gastos no Estado de São Paulo

Governador João Doria anuncia redução de verbas, que atingiria o Conservatório de Tatuí, mas recua após repercussão. Medida expõe fragilidade da área

Firmino em uma sala da Tom Jobim. LELA BELTRÃO

GIL ALESSI, no El País, com edição do DT

09/04/2019 | Firmino Calixto da Rosa Neto, 24, entra em um vagão do metrô em São Paulo com um violão na mão. Apesar do pior da hora do rush já ter passado, às 20h o trem ainda está cheio. O jovem consegue se apoiar e começa a dedilhar o instrumento. Das cordas saem peças do compositor Heitor Villa-Lobos e chorinhos consagrados, como Odeon, de Ernesto Nazareth, desconhecidos da maioria dos passageiros e distantes das grandes rádios. "É assim que eu ganho a vida", diz Neto, nascido no Rio de Janeiro em uma família de classe baixa. Aos 21 anos ele deixou Nova Iguaçu, na baixada fluminense, e foi para São Paulo em busca do sonho de ter uma formação musical em violão clássico. "Eu tocava desde o ensino médio, mas achei que seria bom ter um estudo mais sólido do ponto de vista profissional", explica. Hoje é aluno da Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim e do Conservatório de Tatuí, onde estuda de graça.

"Eu não tenho grana, e graças a estes equipamentos tenho acesso a uma formação gratuita e de muita qualidade. Se eu tivesse que pagar do bolso um conservatório particular teria que ter pai rico. A mensalidade é no mínimo 900 reais", conta. Mas o sonho de Neto – e de milhares de outros jovens – de obter formação e ganhar a vida com sua arte está sob constante ameaça. O governador João Doria (PSDB) anunciou uma série de cortes no orçamento deste ano sob a justificativa de cobrir um déficit nas contas públicas de 10,5 bilhões de reais supostamente herdados do "ex-governador Marcio França" (PSB). A Cultura, sempre uma das primeiras vítimas do arrocho fiscal, entrou na mira. A previsão orçamentária para a área este ano era de 647,2 milhões de reais, e o tucano havia determinado uma redução deste valor em 23%, um corte de mais de 127 milhões de reais. Isso afetaria não só atividades como as do Conservatório de Tatuí e da Tom Jobim, mas também museus com gratuidades como a Pinacoteca, e atividades na periferia.

O impacto dos cortes seria dramático. De acordo com uma projeção feita pela Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura (Abraosc), "os programas mantidos pela Secretaria de Cultura impactaram em 2018 um público direto de 13 milhões de pessoas, e a estimativa é de que esse número seja reduzido em pelo menos 25% com o corte orçamentário". Isso equivaleria a uma redução do público atendido em mais de 350.000 pessoas.

A repercussão do anúncio foi péssima para o governador do Estado cuja capital é uma das mais vibrantes em atividades culturais do país. Após a reação, Doria procurou contornar a situação. Divulgou um vídeo nesta segunda-feira, 8 de abril, atenuando a mensagem anterior. "Não é verdade que vamos cortar serviços e programas desta pasta [Cultura], nem fechar espaços culturais", anunciou ele pelas redes sociais. De acordo com o governador, "a polêmica ocorreu porque anunciamos que as contas do Estado têm um déficit". No entanto, o tucano afirmou não saber “quais programas serão impactados”, mas frisou que “na Cultura nenhum corte será feito, nenhum programa será interrompido”. Em reunião com entidades do setor na noite de segunda-feira seu secretário de Cultura, Sergio Sá Leitão, reforçou a mensagem de que não haveriam cortes. No entanto, ainda não foi apresentada pelo Governo uma proposta de descontingenciamento do orçamento da área.

Apesar do discurso do governador, o horizonte é incerto para a área, tendo em vista o histórico recente da gestão: este foi o segundo recuo de Doria na Cultura em poucos dias. Semana passada, após anunciar que iria fechar unidades do Projeto Guri, que atende mais de 50.000 crianças e adolescentes no Estado, o tucano enfrentou uma chuva de críticas que fizeram com que ele desistisse de passar a tesoura. O Guri nasceu em 1995, e oferece cursos de canto e iniciação musical.

Firmino Neto. LELA BELTRÃO

A Tom Jobim e o Conservatório Tatuí, onde Neto estuda, não são uma exceção na planilha de cortes proposta - e desmentida - por Doria. Caso se confirmassem, ao menos 17 museus e equipamentos públicos voltados para a cultura seriam afetados. A Pinacoteca, um dos mais conceituados museus da América Latina, também sofreria com o arrocho. A expectativa é de que 53.000 alunos deixariam de participar de atividades já planejadas este ano no local. A gratuidade nos ingressos aos sábados, que beneficiou em 2018 mais de 150.000 visitantes, também seria cortada, e o quadro e funcionários reduzido em um terço. Exposições seriam canceladas e a programação cultural do Memorial da Resistência (um dos únicos equipamentos que trabalham com a memória do período da ditadura) suspensa.

Os cortes também teriam impacto devastador justamente onde os equipamentos culturais são mais escassos: nas periferias de São Paulo. Nas Fábricas de Cultura a expectativa é que 250 ateliês seriam cancelados, afetando 5.100 aprendizes. As bibliotecas teriam funcionamento reduzido, e a quantidade de público atendido na região Leste, onde se concentram cinco das 12 Fábricas, teria que ser reduzido em 40%.

Se os cortes e o futuro da Cultura no país ainda estão na balança, suas consequências têm potencial para colocar em risco a formação de Neto. Segundo a Abraosc, apenas na Escola Tom Jobim, onde ele estuda, o contingenciamento poderia levar à suspensão do pagamento de mais de 150 bolsas de estudos e o fechamento de 300 vagas para alunos - de um total de 1.300. Além disso, 80 colaboradores seriam demitidos.

O jovem violonista teme não concluir sua formação musical, e diz já sentir na pele os frutos do descaso com a Cultura. Segundo ele, de 2018 para cá o quadro de professores já foi reduzido no Conservatório Tatuí. "As aulas de música de câmara, que são a prática em conjunto da música erudita, era feita com um grupo por vez. Agora já são dois grupos para um só professor. Já caiu a qualidade", diz. Segundo ele, "ano a ano já vão cortando o orçamento, tirando a possibilidade que tenhamos acesso a uma cultura de qualidade. A impressão que dá é que querem sufocar a possibilidade de quem não tem dinheiro tenha acesso a algo gratuito". Apesar do recuo de Doria, Neto diz que é preciso que a sociedade e os alunos beneficiados pelo programa se mantenham mobilizados.

A Abraosc destacou ainda que "a Cultura contribuirá desigualmente [nos cortes] com um valor mais que seis vezes maior do que o peso da pasta no orçamento total do Estado". Ou seja, o contingenciamento total do orçamento geral proposto inicialmente por Doria foi de 3,54%, mas a Cultura arcaria com redução de 23%.

Se no orçamento da Cultura o governador cogitou passar a tesoura, o mesmo não pode ser dito das reformas no Palácio dos Bandeirantes. Segundo informou a colunista da Folha de S.Paulo Mônica Bergamo, as obras, feitas com a supervisão da arquiteta Joia Bergamo, já custaram aos cofres públicos 1,1 milhão de reais em reparos em goteiras, descupinização e pintura.

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