domingo, 13 de junho de 2010

Olhai as lyras do campo (suíte lyrica)

POR HENRIQUE AUTRAN DOURADO
O trocadilho com a Suíte Lírica do Alban Berg é óbvio para quem é do meio. Composta para quarteto de cordas, mostra um Berg inteligente e sensível, apesar de ex-aluno de Arnold Schoenberg, criador da escola dodecafônica (cuja música é feia como a palavra, mas é de suma importância). Berg também escreveu um lindo concerto para violino e orquestra, dedicado “à memória de um anjo”, moderno e eterno, e conseguiu ser lírico e romântico em pleno experimentalismo do século 20.
Já o subtítulo - “Olhai as lyras do campo” – é uma alegoria sobre “Olhai os lírios do campo” (1938), do Érico Veríssimo (o grande escritor, pai do cronista Luís Fernando). Veríssimo foi um gaúcho de família riquíssima – e ficou pobre, quebrado. Em seu livro, Eugênio, formado médico, morre de amores por Olívia, mas se casa com Eunice por conveniência, não por amor. Essa dualidade interesse/segurança/conveniência versus amor/paixão/sentimento, conflito que permeia o livro, parece inspirada na vida do autor. Amante da música lírica, aliás.
Já ia me perdendo nesses assuntos do título, quando me lembrei do prato principal, o Encontro Internacional de Metais, que aconteceu em maio deste ano no Conservatório de Tatuí com grande sucesso (metais são os instrumentos dessa seção nas orquestras e bandas, começando pelo mais agudo, o trompete, passando pela trompa e trombone até chegar aos mais graves, bombardino e tuba. Há ainda diversos outros na família). E atenção: flautas não são da família dos metais, são madeiras, porque eram feitas desse material em sua origem.
Aqui, além da brilhante performance da nossa Banda Sinfônica, destacou-se o afinadíssimo e bem-humorado Boston Brass, quinteto nascido na cidade onde morei, terra do The Bostonians, romance de Henry James enfurnado na política e nos bastidores da vida não muito católica (ou kosher, para os judeus) da outrora puritana cidade dos Quakers e Pilgrims. Também agradou o virtuosismo escocês com jeito quase malaco (é casado com uma baiana) do tubista James Gourlay. Mais uma vez, vou tentar não me perder mais, pois já me perdi longe do cenário principal, de onde as linhas que me restam se desenvolverão: a Lyra Tatuí.
Diante das lágrimas do trompetista Jeff Corner, os demais do quinteto não sabiam o que fazer. Já a Vera Holtz, fada-madrinha da banda, está acostumada, mas não escondia seu entusiasmo incontido. Também, pudera, ser fada-madrinha de anjos... Eu, por via das dúvidas, levei covardemente meus óculos escuros, escondendo-me por trás deles. Haja lenços de papel para os que choram ou babam, duas das categorias frequentes na plateia da Lyra.
Depois de tanta introdução, vem o desenvolvimento, tema deste artigo, que trará a coda (final do movimento) de meu texto. Tudo embolado, com as escusas aos musicólogos. Mas é que só dá para encerrar deixando aquela sensação de “obra aberta”, sem fechar conclusão, como queria o escritor italiano Umberto Eco. Pois a Lyra Tatuí é uma das coisas mais importantes que já aconteceram no ensino musical e na preparação de jovens para a vida no Brasil (vou fugir do “nunca antes neste país”). Se o Conservatório tem a execução musical como atividade meio e o ensino como fim, o Projeto Guri, que atende a milhares de crianças no Estado, tem, ao contrário, o ensino como meio e o trabalho social como fim. A Lyra, ora, a Lyra... a Lyra é mezzo-mezzo, uma mistura fina bolada por um cidadão simples e especial como o Adalto Soares e sua diuturna companheira, Silvia Zambonini. Lutaram sozinhos, conquistaram prêmios e fazem um trabalho de bastidores, deixando a glória merecida para os seus meninos, sob os calorosos incensos da plateia em comoção, quase um delírio coletivo.
Meninos, eu vi. Todos devemos ajudar, precisamos fazer Adalto se multiplicar, clonemos ele! Viva os jovens sadios rompendo o feitiço do crime, do ócio, da pobreza. O Conservatório vai continuar ajudando e lutando, sem colocar um dedo que seja no trabalho da Lyra. Sejamos conhecidos fora das mulatas e do Carnaval, do “sertanejo” que é country americano, do pagode que não é pagode e dessa vitória pouco provável na Copa. Lyra Tatuí!

Transcrito do jornal O Progresso de Tatuí, edição de 6 de junho de 2010

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