domingo, 27 de maio de 2018

crônica / Ana Moraes

Procissão aos hidrocarbonetos

As minúsculas cadeias, imperceptíveis aos olhos, de hidrocarbonetos desencadearam um enorme caos na cadeia produtiva do Brasil, deixando os olhos quase cegos. Os combustíveis fósseis são por natureza hidrocarbonetos, dos quais nossa sociedade moderna é dependente.

O aumento abusivo desses combustíveis teve como consequência uma manifestação em massa das hemoglobinas que oxigenam as artérias econômicas do Brasil, ou melhor, dos caminhoneiros. Os caminhoneiros com suas grandes feras metálicas entupiram as artérias brasileiras, reivindicando, com pleno direito, a baixa nos preços exorbitantes dos combustíveis fósseis. Os peões colocaram o rei em xeque.

Assim, como praticamente todo o Brasil, a cidade tatuiana foi acometida pela carência de abastecimento de combustível e entre outras mercadorias, acarretando em um desespero que bateu na porta dos munícipes da cidade.

Os veículos se direcionavam sequiosos para os postos de combustíveis, formando enormes filas pela cidade, buscando saciar sua sede artificial. Filas de veículos avolumaram e atrapalharam o tráfego na cidade.

A Rua do Cruzeiro, localizada no centro da cidade de Tatuí, é uma rua icônica da cidade da música. A rua simboliza o ciclo da vida. Ao longo de sua trajetória, as pedras intertravadas de concreto podem impactar na caminhada se andares apressadamente, por isso o ideal é andar com calma, para não levar um tombo. Há várias idas e várias paradas que exigem atenção e paciência. E no final, vem a redenção, representada por uma cruz encaixada no centro da rua que morre, literalmente, onde se encontram os leitos eternos destinados a carne, onde repousam sob pedras emotivas os restos do que já foram vidas.

Em sua extensão, existe um posto de combustível. Os veículos, ao contrário das dos seres humanos, fizeram sua procissão, formando uma fila direcionada no sentido contrário ao da cruz. Independentemente da cor, da marca, do número de rodas, do interior aveludado ou rasgado, os veículos recorreram a um templo universal dentro de sua religião única. Uma religião com credo embasado nos hidrocarbonetos, onde buscam renovar suas necessidades materiais. Esta situação estruturou um antagonismo que dicotomiza o ser humano desde suas primordialidades: de um lado a cruz, a crença e a espiritualidade, do outro o posto, a materialidade e o consumismo.

Seria muito bom se os seres humanos bebessem de uma mesma fonte e extirpassem qualquer tipo de preconceito, assim como fazem os carros em seus momentos difíceis. Desta forma, talvez conviveriam em paz, uma coisa que, por definição, só existe em dicionários.

A.M.O.R.
(Ana Moraes de Oliveira Rosa)

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